21 de setembro de 2009

O Acordo Ortográfico e as mudanças na língua



Ilustração: Revista Época. Clique para ampliar.

Já estão em vigor as reformas no sistema ortográfico de algumas palavras usadas pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que inclui o Brasil. O que fazer? Os estudiosos da linguagem há muito já provaram que as línguas são invenções humanas. Uma vez criadas, ganham vida, movimento e funcionamento próprios. Produto da inteligência coletiva, criativa e adaptativa dos falantes, elas permitem-nos expressar nossas necessidades afetivas, sociais e religiosas.

Os linguistas vêm mostrando, por meio de pesquisas científicas sérias, que todas as línguas passam por variações e mudanças ao longo do tempo e nos diferentes espaços por onde estão distribuídas. Para acompanhar esses dois princípios naturais das línguas, fazem-se necessárias constantes revisões nos documentos que regulamentam a modalidade escrita dos idiomas, já que controlar as inovações na fala de um povo é praticamente impossível. Na verdade somos nós falantes os reais donos da língua; somos nós que propomos, às vezes até inconscientemente, mudanças linguísticas que podem ser adotadas ou não. A ampla adesão dos falantes de diferentes classes sociais a uma nova palavra ou expressão pressiona indiretamente as instituições a incorporá-la e a legitimá-la no léxico (conjunto de palavras) da língua.

Assim, quando uma novidade linguística começa a aparecer reiteradamente nos textos da mídia impressa, eletrônica e digital, os dicionários e documentos dos poderes constituídos incorporam-na oficialmente. Em geral, só depois de todo esse complexo processo de absorção social é que as gramáticas normativas escolares admitem a existência de tal inovação no idioma, rendendo-se, enfim, à mudança na língua. A reforma ortográfica que entrou em vigor revela um grande avanço. A promoção de um acordo ortográfico abranjendo todos os países lusófonos não é só uma iniciativa política com efeito diplomático e econômico entre tais países. Esse acordo representa também o reconhecimento de uma necessidade prática há muito percebida por todos os profissionais que vivem da escrita.

Ninguém com um mínimo de escolaridade e bom senso confundiria a preposição “por’ com o verbo “por” grafado sem o acento diferencial como na frase: “Por mim, o governo deveria por ordem na casa”. Será que as pessoas deixarão de aproveitar uma promoção de lingüiça no supermercado quando essa palavra aparecer no cartaz sem o trema? O Brasil deixará de ter “um brado heroico e retumbante”, caso o ditongo aberto “oi” não esteja incrementado com o acento agudo? A palavra “feiura” ficará mais ‘feia’ se for retirado o acento agudo no “u” tônico como propõe a reforma? Sejamos razoáveis, nada disso nos impedirá de compreendermos o sentido da frase pela ausência ou presença desses sinais, pois são o co-texto (as outras palavras em volta) e o contexto (a situação de comunicação) que determinam o sentido de uma palavra ou expressão. Se deixarmos de entendê-lo, o problema não será dos acentos ausentes.

Embora tímida, a reforma ortográfica vislumbra uma crescente sensibilidade dos falantes do Português a aceitar a língua como um fenômeno cultural e histórico construído socialmente com a contribuição de cada um de seus usuários. Esse Acordo revela a percepção da estabilidade relativa da língua, que não pode ficar refém dos caprichos de meia dúzia de puristas que dela se acham proprietários. A língua muda porque nós estamos sempre mudando, estamos nos renovando a cada dia. Talvez essa seja nossa maior riqueza: nossa capacidade de renovação expressa principalmente por meio da linguagem. A língua apenas reproduz essa “metamorfose ambulante” que inelutavelmente somos, ainda que não a percebamos. Se assim não fosse, morreríamos lentamente de tédio e conosco, a língua.

O que devemos fazer agora? Adaptarmo-nos rapidamente às mudanças propostas no Acordo. Esperamos que reformas mais amplas na escrita da Língua Portuguesa sejam oficializadas brevemente, pois essa é a tendência natural de uma das mais importantes criações humanas.


Antonio Carlos Xavier é professor do Departamento de Letras da UFPE

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